sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Night echoes, night shadows and me.


Sundries

Voltei pra casa com o coração apertadinho. “As circunstâncias”... ingratas!

Levo o Totty, meu Schnauzer vetusto como eu, para o último passeio (do dia...) entre onze e meia a meia noite e meia. A estas horas saio sem lenço nem documento, sem nem grana para os inexistentes assaltantes aqui em Pitangueiras; só o maço de cigarros, isqueiro e celular.

Saí pela Mario Ribeiro em direção à pracinha de onde iria para o calçadão.  O vulto indistinto ao longe, perto do mercadinho “Barra” já fechado de há muitas horas, parecia de duas pessoas semiagachadas. Mais perto vi que era apenas uma pessoa, parecia uma mulher gorda arrastando com dificuldade alguma coisa; um cachorrinho preto esguio a rodeava. O Totty logo quis “falar” com o colega que, arredio, meio que fugia, mas queria brincar. Nos chegamos, vulto e eu, mais perto: era um homem.

- Ele está assim porque o dono dele morreu, disse o velhinho negro, cabelos ralos branquinhos, barba grande idem, paletó preto de defunto maior, gordo de roupas umas por outras, sandálias semiacabadas, curvado para puxar o carrinho de feira “adaptado”, lotado de tralhas, alguns panos, saco enorme de latinhas, três latas vazias grandes, de óleo ou tinta.

Abaixei-me para acariciar o cachorrinho que, depois disso, se socializou com o Totty.

- Como ele se chama?

- É... O dono dele morreu; tava doente tomou cachaça, morreu. Morreu o Mineiro, o... Quem tá doente e enche o bucho de cachaça morre.

O velhinho, que não sei se chegaria a algum lugar ainda vivo estava só. Morrerá só.

E eu sem uma moedinha que fosse!

- Que sapato bonito! (meu tênis).



Quando muito jovem meu filho, lá por seus 13 ou 14 anos, tirou seu tênis  e o deu para um garoto pobre, descalço, que olhava o seu, ele disse, com olhos compriiidooos; Minha esposa e eu entendemos, fingimos dar uma bronquinha, nos orgulhamos dele. Para este velhinho de nada serviria dar o meu agora (desculpa para a consciência pesada).

Bati em seu ombro “Que Deus o proteja e ajude amigo”.

Obrigado, você também.

E lá se foi ele, curvadinho, andando, ou melhor, arrastando os pés devagarinho, pela noite de nossas sombras.

Calçadão, catar cocô, ondas quebrando barulhentas, lindas, iluminadas pelas luminárias da praia, nada apagava os ecos da voz fraquinha e trêmula, as sombras de sua figura.

- Voltar! Pra casa Totty!

Voltamos pela Mario Ribeiro em direção à Avenida Leomil.

Os ecos das sandálias de dedo batendo firme no asfalto me chamaram a atenção. Assim de soslaio era um jovem, imaginei de seus vinte e alguns anos, moreno escuro, andando rápido, ereto, magro, saco de latinhas ao ombro. Passou por nós pelo meio da rua deserta.

Eu já ia entrando no prédio quando ele, parado no poste da esquina, de lá me disse “... siri?”.

Fui até ele:

- O que você disse?

E vi que tinha bem mais de trinta.

- O Rancho do Siri, sabe onde fica?

- Não conheço; não sei.

- É vou perguntando por aí.

Havia ainda alguma gente dentro do boteco do outro lado da rua; imaginei que ele não tenha tido coragem de perguntar lá.

- Vou perguntar ali no bar.

-Não, eu vou por ali ou ali (apontando pra lá e cá) perguntando. Me disseram que lá compram latinhas e eu preciso de uma cachaça. Sou morador de rua.

- Sim, eu entendo.

-É vida muito dura. Não é culpa de Deus (apontando pra cima), nem de mim (bateu no peito). É culpa das circunstâncias.


Tudo isto em bom Português!


Eu ia explicar que estava sem grana; meu movimento involuntário deve ter dado isto a entender.

- Posso lhe pedir uma coisa? Não! Nada de dinheiro: eu nunca peço nem aceito dinheiro. Queria um cigarro.

- Poxa, que bom, isto eu tenho aqui. E lhe dei três.

- Oba, já vou acender um aqui.


Eu ia pegar o isqueiro,


- Obrigado, eu tenho um. E como você se chama?

- Flavio, e você?

- Filipi.

- Sim, Felipe...

- Não! Fi li pi, nem Felipe nem Filipe. Fi li pi, tudo com “i”.

- Fi li pi. (caprichei na pronúncia).

- Vô andando.

- Tudo de bom procê, que Deus o ajude.

- É, tá difícil, mas Ele (apontando pro céu) vai ajudar.


Lá se foi.


As sombra e os ecos do velhinho ainda estavam ali.


É, Fi li pi, pensei, pode ser que ele seja você amanhã.


Circunstâncias. São as circunstâncias...

  
FMFG
Pitangueiras, 31/01/2013

2 comentários:

  1. Muito bem apanhado! Quantas dessas situações se apresentam sob nossos narizes e não as percebemos?!
    Mas pensei que depois de não ter dado o par de tênis ao velhinho, você tivesse acabado tendo que se desfazer dele para dar ao mais jóvem... Lembrei-me de um amigo que me contou ter ficado desesperado diante do hotel em chamas lá na cidade do Cairo porque tinha 30 mil dólares escondidos no quarto. Tanto chateou um bombeito que acabou tendo permissão para ir até lá e resgatar a grana no meio do fogo... para, na noite seguinte, perder tudo jogando num cassino ao lado...
    Parabéns e um grande abraço
    Luiz A. Góes

    ResponderExcluir
  2. É, seu amigo foi vítima também das "circunstâncias"...rs

    Obrigado e abração.

    ResponderExcluir

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