Intervalos
Ana Claudia Leite Dantas Ferreira.
No ano 2000 comecei a me comportar como urso. Levei meu menino ferido para uma toca e ficamos ali, no breu, tratando dos ferimentos. Pouco tempo passou e tornei-me uma exímia ursa. Nos dias quentes, cegada pela luz do sol, ia à caça de alimento. Voltava com aquilo que alcançava e que já não saciava. Aos poucos, o inverno se estendia até não haver mais verão, nem sequer a luz do dia. Na toca, cada vez mais escura, havia um ralo calor de origem desconhecida. Eu me sabia ali com meu filho, e só isso. Um dia senti a força das mãos delicadas da minha filha e vi que o escasso calor se acrescia. Não punha mais o rosto para fora da toca, pois, lá, o inverno era intenso e o frio açoitava. Outro dia senti que ali haviam mais braços, eram poucos, mas fortes, e o calor acrescido começava a ser suficiente. Éramos cegos para o presente e para o futuro, mas os olhos fechados fez nascer a visão, que fugia por entre os poros da pele, iniciando uma luz rala no recinto. A luz somou-se ao calor que se aproximava do saudável. Das feridas do meu filho, algumas cicatrizavam, mas eram muitas aquelas em carne viva. O tempo longo era também um tempo muito curto. A vida aflita se estabelecia, a visão foi vista vindo da alma, e o calor, já se sabia, tinha origem no coração. A aflição aos poucos mudava de cor e deixava-se cobrir de calmaria. O amor se insinuava do riso. As pessoas que nos acresciam calor e luz eram poucas, porém enormes; e nada pediam em troca. Passaram-se dez anos e, quando já não havia mais feridas no corpo do meu amor, quando já nem se via cicatrizes, num dia de calmaria com luz boa e agradável calor, de súbito rompeu-se o vácuo, meu filho rasgou-se em lança, montou o seu unicórnio e foram. Em instantes, alados, explodiram as paredes terrestres e jogaram-se no sideral. De lá, despejaram-nos o dia, que se abriu em verão intenso e cintilante. Fez-se a música nos ouvidos. Era meu menino despedindo-se daquela gente boa e paciente que não deixou a sua luz apagar. E eu estava ali entre eles, cansada. Devagar e em silêncio, fui, só, em ré, para a mesma toca onde aprendera a morar. Ali fiquei. Já não fazia mais frio, já não fazia mais nada. Não era claro ou escuro. Era oco, e o silêncio absoluto gritava um doído agudo infinito que derrubava meu corpo ao relento... Jogada ali a esperar, esperar..., permaneci por bom tempo. Passaram-se quatro anos, desde aquela morte que não veio para me buscar. Aquela que levou de mim o meu filho, o meu ar. Foi quando vi minha menina, singela, ao meu lado, me segurando no braço, com a grande força de suas delicadas mãos. Linda foi essa visão que me fez voltar da caverna! Agradeço aos amigos que compareceram. Agradeço aos meus meninos, meus amores, é por eles que morro, é por eles que vivo e é deles o tecido da minha vida. Obrigada Pedro, obrigada Rita. (Ana Claudia, em Intervalos.)
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