Dias lentos, noites arrastadas...
Aqui não se dorme nunca:
Só se cochila.
Quis ver minha amada.
A janela está longe,
Mas sei que está lá
Fazendo feliz o mundo
Em nome de nosso
amor.[1]
Chuááá! Um de meus colegas (companheiros passou a ser confundido com
“cumpanheros”...) de enfermaria deu descarga na privada, na gosmenta madrugada.
Céu escuro, me parece, mas não se sabe ao certo a hora neste início de
horário de verão.
Escuro aqui? Não; há sempre luzes, no corredor; lá de fora anúncios
piscantes e janelas iluminadas por que se advinha gentes madrugantes, imagens
vindas do mundo vivo-dormente, nos chegam pelas janelas.
Chamo a enfermeira; ainda não consigo descer da cama e ir ao banheiro
sozinho, inda mais enrolado nesta faixa elástica que me comprime barriga e
costelas, carregando esta “arara” pendurada de saquinhos e tubos. Preciso só
fazer pipi, mas nunca consegui nem consigo usar o “papagaio”, custo muito a
urinar e, ao final, sempre molho a cama! Lança curta, ojeriza psicológica ou
pavor atávico daquela boca?
Começam os chatos “quero-queros”, seus irritantes, altos e agudos pios,
“quiiik, quiiik, quiiik...”; daqui a pouco serão os bem-te-vis logo
acompanhados pelo som mavioso dos sabiás: saudações alegres ao dia que vai
começar. Minha passarada: araras, papagaios, quero-queros, bem-te-vis,
sabiás...
Será dia curto para quem tem tanto que fazer, tantas ocupações e
preocupações. Aqui será longo; mais cheio de movimentação, mais alegre, às
vezes angustiante, à espera de mais uma gosmenta noite.
- Seu Flavio, uma picadinha, uma injeçãozinha subcutânea, dói um
pouquinho; onde quer que eu aplique, na perna ou no braço? (Tudo no
diminutivo... rs).
- Pra mim tantôfaz;
onde for melhor para você.
Doeu um nadica. A enfermeira me explica que é para evitar coágulos
travessos.
- Seu Flavio, vamos ver a pressão e temperatura?
- Manda ver, menina.
(Pressão um pouco mais alta que o normal; também, fiquei 5 dias sem
minha Losartana... Hoje vão começar a me dar de novo).
- Uma picadinha no dedinho. (Sempre diminutivos, que ao longo da estadia
se acumulam em aumentativos “Chega!”).
- Tudo bem, glicemia
ótima.
- Seu Flavio, banho agora ou depois do café?
(a fome brava se assanhou com uma possível comida).
- Depois, garoto.
Vão os três outros já melhores que eu.
E chega o “café da manhã”: um copo de chá, duas bolachas maisena e um
potinho (neste caso vale o diminutivo) de gelatina!
Arrasta-se também o dia. Estou muito cansado; tento dormir e só cochilo
um pouco, várias tentativas, vários cochilos.
Alívio e alegrias com as visitas da Julieta e de minhas filhas Thais e
Thelma; Thelma me aplica Jin Shin todos os dias, o que me ajuda muito.
Hora das visitas, hora de socialização e bate-papos entre todas e todos
visitantes de nós quatro. Em geral são nossas mulheres e filhas; por sua
natureza, falam muito, interagem, contam e comentam tudo e sobre tudo. Agitação
que distrai e alegra. Os homens se chegam a seus pacientes, murmuram coisas
quase inaudíveis, ficam calados, vão embora.
Quando estamos sós todos nos ajudamos, na medida em que podemos. Nasce
uma amizade e coleguismo que durará até que uns e outros vão tendo alta e são
substituídos por outros que, em poucas horas, também entram na roda de amizades
e auxílios mútuos. Alguns trocam ideias, projetos e números de telefone. Coisa
inimaginável se estivéssemos reclusos, cada um em maravilhoso e inodoro quarto
de hospitais bacanas, onde também familiares e amigos sofreriam e teriam suas
vidas atrapalhadas pelos rodízios dia e noite.
Um dia após outro e uma noite arrastada, gosmenta, no meio...
Passei a, sozinho, me movimentar, ir ao banheiro, tomar banho, carregar
a arara pelos corredores (socialização e papos sempre iguais com outras e
outros carregadores de araras ou de sacos de urina).
E aqueles dias e noites de calor intenso e ar parado do início da
primavera. Eu saía, andava muito, na esperança que o cansaço me levasse a
algumas horas de sono.
Todas as manhãs, logo após o café, passam os Internos a quem coube tomar
cada um como cobaia particular. Todos muito jovens e simpáticos. O “meu”
pergunta como estou, faz minuciosa auscultação do coração e pulmões, solta
minha faixa, aperta minha barriga e dá aquelas pancadinhas em cima de seus
dedos pela barriga inteira, ausculta e diz que já há bastante movimento;
examina os 29 pontos e diz que estão lindos. É o comentário também das
enfermeiras que fazem os curativos. Não acho que sejam lindos, mas realmente
feitos com tal perfeição pelo Dr. Cassio ou pela médica, também nissei, que o
assistiu na cirurgia: até parece uma mensagem em Kanji...
De 3ª a 6ª pela manhã passa um Professor rodeado por 5 a 10 estudantes
que dão aulas muito interessantes examinando e comentando sobre cada uma das
cobaias. Terças e sextas são dias em que o Chefe da Clínica Cirúrgica, um
nórdico ou descendente, alto e de cabelos grisalhos, dá as aulas, este sempre
com bandos maiores de estudantes. Gosto muito do cara, que já conhecia desde o
tempo de minha cirurgia anterior: baita experiência, enorme competência
didática, simpático, prático e seguro, esta estada de agora é refresco diante
da experiência de morte, ressurreição num mundo de sonhos maravilhosos,
coerentes para mim em minha loucura, apavorantes para minha família e amigos.
Um dia após outro, outra noite arrastada e gosmenta no meio...
A alta demorou ainda um pouco e finalmente pude me despedir dos colegas
e amigos de ocasião, desejar-lhes... aquilo tudo que vem de dentro e convém.
FMFG - 9 de novembro de 2012
[1] Final de meu poema “Paixão”, que você pode ler clicando AQUI