A viagem tinha sido muito longa, desde o início de sua
maturidade, já distante quase 70 décadas.
Ainda por cima, fazia frio e o céu estava cinzento.
Em seu pequeno apartamento, a que conseguira chegar há
quatros anos, conquista dura de então tão almejada, a uma semana não conseguia
dar conta de todas as tarefas mais necessárias; já deixara as urgentes para
amanhã.
Fazer café logo que acordava, ao menos para ajudar a fumar;
fazer comida, empurrar comida garganta abaixo, lavar pratos, talheres,
vasilhas.... Lavar ao menos o mínimo de roupas, levá-las a secar.... Se impor
um banho naquele frio. Tudo sem graça, sem sentido.
Disfarçava para si mesmo que nada havia, lendo, lendo muito.
Disfarçava e preenchia o tempo, à espera, de que? E os cigarros que ia
consumindo ao ler já não tinham a graça, o sabor de antes, insossos, inócuos,
mas os consumia, era melhor que nada. Que nada? Qual nada?
Inteligente, sei que o atormentava mais sua extrema lucidez;
ignorantes não sofrem disto, brutos não amam, dizem; nunca acreditou em todos
estes chavões, nunca lhes deu importância: o importante era o que sabia e
sentia ele.
A solidão real era amenizada por tempos em que passava ligado
à Internet, por sua conexão vagabunda, mas conexão com os amigos reais em
mensagens virtuais, com amigos virtuais em redes idem.
Entrou no site de seu Banco para ver os caraminguás que
restavam.
Foi ao mercado comprar o que dava. Ah! Como seria bom poder
comprar um whisky nacional, o mais barato, não importa!
Sem remédios e sem whisky, não conseguia dormir cedo.
Vagava por noites e madrugadas movido a água, café e
cigarros; até quando os poderia comprar?
Às vdezes dormia sobre o teclado.
Ele contou-me, uma vez em que lhe paguei um jantar, que se
lembrava de um tal de Seu Felizardo (era nome próprio mesmo), amigo de seus
avós, celibatário, que não se vestia com o mínimo de atenção, que cheirava a
velho para seu nariz de criança, sempre taciturno, apenas se deliciando de uma boa
refeição. Pela magreza, segundo ele, não devia ter o que comer. Tinha pavor de
que viesse a ser um “Seu Felizardo”.
Exausto, lá pelo início das manhãs, deitava-se, de agasalhos
e moletom, em baixo de lençóis e edredom Paraíba; era agnóstico, convertido de seu
primevo cristianismo; portanto um agnóstico convicto, acho.
Mas, involuntariamente ou não, me disse que fazia o sinal da
cruz ao apagar as luzes...
Disse ainda que dormia como um prego por 8 a 10 horas seguidas;
sonhava lindos sonhos, coloridos e alegres; acordava à uma ou duas da tarde,
exasperado consigo mesmo por ter perdido as tão poucas horas de sol da estação.
E, dizia, tudo se repetiria amanhã como na canção de Chico: “Ela faz
tudo sempre igual...".
Perdi contato com ele.
É, ou era, uma pessoa de sólida estrutura emocional, um
guerreiro; jamais cometeria suicídio.
Um dia ainda nos trombaremos por aí.
FMFG
Maio de 2016