sábado, 18 de junho de 2016

Exaustão


A viagem tinha sido muito longa, desde o início de sua maturidade, já distante quase 70 décadas.

Ainda por cima, fazia frio e o céu estava cinzento.

Em seu pequeno apartamento, a que conseguira chegar há quatros anos, conquista dura de então tão almejada, a uma semana não conseguia dar conta de todas as tarefas mais necessárias; já deixara as urgentes para amanhã.

Fazer café logo que acordava, ao menos para ajudar a fumar; fazer comida, empurrar comida garganta abaixo, lavar pratos, talheres, vasilhas.... Lavar ao menos o mínimo de roupas, levá-las a secar.... Se impor um banho naquele frio. Tudo sem graça, sem sentido.

Disfarçava para si mesmo que nada havia, lendo, lendo muito. Disfarçava e preenchia o tempo, à espera, de que? E os cigarros que ia consumindo ao ler já não tinham a graça, o sabor de antes, insossos, inócuos, mas os consumia, era melhor que nada. Que nada? Qual nada?

Inteligente, sei que o atormentava mais sua extrema lucidez; ignorantes não sofrem disto, brutos não amam, dizem; nunca acreditou em todos estes chavões, nunca lhes deu importância: o importante era o que sabia e sentia ele.

A solidão real era amenizada por tempos em que passava ligado à Internet, por sua conexão vagabunda, mas conexão com os amigos reais em mensagens virtuais, com amigos virtuais em redes idem.

Entrou no site de seu Banco para ver os caraminguás que restavam.

Foi ao mercado comprar o que dava. Ah! Como seria bom poder comprar um whisky nacional, o mais barato, não importa!

Sem remédios e sem whisky, não conseguia dormir cedo.

Vagava por noites e madrugadas movido a água, café e cigarros; até quando os poderia comprar?

Às vdezes dormia sobre o teclado.



Ele contou-me, uma vez em que lhe paguei um jantar, que se lembrava de um tal de Seu Felizardo (era nome próprio mesmo), amigo de seus avós, celibatário, que não se vestia com o mínimo de atenção, que cheirava a velho para seu nariz de criança, sempre taciturno, apenas se deliciando de uma boa refeição. Pela magreza, segundo ele, não devia ter o que comer. Tinha pavor de que viesse a ser um “Seu Felizardo”.

Exausto, lá pelo início das manhãs, deitava-se, de agasalhos e moletom, em baixo de lençóis e edredom Paraíba; era agnóstico, convertido de seu primevo cristianismo; portanto um agnóstico convicto, acho.

Mas, involuntariamente ou não, me disse que fazia o sinal da cruz ao apagar as luzes...

Disse ainda que dormia como um prego por 8 a 10 horas seguidas; sonhava lindos sonhos, coloridos e alegres; acordava à uma ou duas da tarde, exasperado consigo mesmo por ter perdido as tão poucas horas de sol da estação.

E, dizia, tudo se repetiria amanhã como na canção de Chico: “Ela faz tudo sempre igual...".

Perdi contato com ele.

É, ou era, uma pessoa de sólida estrutura emocional, um guerreiro; jamais cometeria suicídio. 

Um dia ainda nos trombaremos por aí. 



FMFG

Maio de 2016

terça-feira, 14 de junho de 2016

Solidões


Jantei sozinho, aqui no pequeno apartamento que foi meu sonho, e agora assisto o Jornal das 10 da Globo News.



É a cada dia diferente, a cada dia uma repetição com as pequenas alterações que compõem o andar da vida, de minha vida.

É como as cenas finais de 2.001, Uma Odisseia no Espaço, o personagem na cama, mudando a cada dia um pouco, 


até que, morto, retorne à terra como um feto e monólito-meteorito-lingote caído no pleistoceno inferior, apavorando e sendo deificado por bando de homus erectus ou neandertalis.



Como de hábito, tomarei umas doses de Natu Nobilis (cada vez menores por falta de grana) para embalar os sonhos que, sei, também como de hábito, serão coloridos, estranhos, intrigantes, mas gostosos.
 
E tudo recomeça...

E amanhã toda a liturgia, desde o acordar até o Jornal da 10, se repetirá.

Não sou tão infeliz como o Dr. David Bowman; não preciso que me tragam comida, tomo meu café da manhã (passado por mim), e preparo minhas refeições, normalmente no micro-ondas. Comer, lavar pratos, recepientes, e talheres, lavar roupa...

E, até hoje, não apareceu um monólito à minha frente.

A diferença é se você pode curtir a solidão – como já a curti – ou se ela lhe é imposta.

Vim morar aqui por escolha, para viver em cidade gostosa, agradável, fugindo da loucura de Sampa; mas também porque meus recursos não davam mais para morar lá. Aluguei meu apê de Sampa, e aqui o custo de vida é de 20 a 40 % menor, conforme o item.

Curti meu apezinho, minha solidão com alegria. Ia a São Paulo vária vezes para ver minhas filhas, meus amigos, a Ilhabela para ver meu filho. Era solidão controlada.

De repente, um tropeço, uma imbecilidade minha, acabou com tudo! Fiquei só com minha aposentadoria pelo INSS.

Solidão assim, forçada, não tem graça.

Espero que um monólito me reconduza à terra, à minha solidão programada.

Boa noite!


FMFG

Junho de 2016

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