sábado, 28 de dezembro de 2019

Dia lentos, noites arrastadas




Aqui não se dorme nunca:
Só se cochila.
Quis ver minha amada.
A janela está longe,
Mas sei que está lá
Fazendo feliz o mundo
Em nome de nosso amor[1].

Chuááá! Um de meus colegas (companheiros passou a ser confundido com “cumpanheros” ...) de enfermaria deu descarga na privada, na gosmenta madrugada.

Céu escuro, me parece, mas não se sabe ao certo a hora neste início de horário de verão.

Escuro aqui? Não; há sempre luzes, no corredor; lá de fora anúncios piscantes e janelas iluminadas por que se advinha gentes madrugantes, imagens vindas do mundo vivo-dormente, nos chegam pelas janelas.

Chamo a enfermeira; ainda não consigo descer da cama e ir ao banheiro sozinho, inda mais enrolado nesta faixa elástica que me comprime barriga e costelas, carregando esta “arara” pendurada de saquinhos e tubos. Preciso só fazer pipi, mas nunca consegui nem consigo usar o “papagaio”, custo muito a urinar e, ao final, sempre molho a cama! Lança curta, ojeriza psicológica ou pavor atávico daquela boca?

Começam os chatos “quero-queros”, seus irritantes, altos e agudos pios, “quiiik, quiiik, quiiik...”; daqui a pouco serão os bem-te-vis logo acompanhados pelo som mavioso dos sabiás: saudações alegres ao dia que vai começar. Minha passarada: araras, papagaios, quero-queros, bem-te-vis, sabiás...

Será dia curto para quem tem tanto que fazer, tantas ocupações e preocupações. Aqui será longo; mais cheio de movimentação, mais alegre, às vezes angustiante, à espera de mais uma gosmenta noite. 
- Seu Flavio, uma picadinha, uma injeçãozinha subcutânea, dói um pouquinho; onde quer que eu aplique, na perna ou no braço? (Tudo no diminutivo... rs).
- Pra mim tantôfas; onde for melhor para você.
Doeu um nadica. A enfermeira me explica que é para evitar coágulos travessos.    
- Seu Flavio, vamos ver a pressão e temperatura?
- Manda ver, menina.
(Pressão um pouco mais alta que o normal; também, fiquei 5 dias sem minha Losartana... Hoje vão começar a me dar de novo).
- Uma picadinha no dedinho. (Sempre diminutivos, que ao longo da estadia se acumulam em aumentativos “Chega!”).
- Tudo bem, glicemia ótima. 
- Seu Flavio, banho agora ou depois do café?
(a fome brava se assanhou com uma possível comida).
- Depois, garoto.

Vão os três outros já melhores que eu.

E chega o “café da manhã”: um copo de chá, duas bolachas maisena e um potinho (neste caso vale o diminutivo) de gelatina!

Arrasta-se também o dia. Estou muito cansado; tento dormir e só cochilo um pouco, várias tentativas, vários cochilos.

Alívio e alegrias com as visitas da Julieta e de minhas filhas Thais e Thelma; Thelma me aplica Jin Shun Jyatsu todos os dias, o que me ajuda muito.

Hora das visitas, hora de socialização e bate-papos entre todas e todos visitantes de nós quatro. Em geral são nossas mulheres e filhas; por sua natureza, falam muito, interagem, contam e comentam tudo e sobre tudo. Agitação que distrai e alegra. Os homens se chegam a seus pacientes, murmuram coisas quase inaudíveis, ficam calados, vão embora. 

Quando estamos sós, todos nos ajudamos, na medida em que podemos. Nasce uma amizade e coleguismo que durará até que uns e outros vão tendo alta e são substituídos por outros que, em poucas horas, também entram na roda de amizades e auxílios mútuos. Alguns trocam ideias, projetos e números de telefone. Coisa inimaginável se estivéssemos reclusos, cada um em maravilhoso e inodoro quarto de hospitais bacanas, onde também familiares e amigos sofreriam e teriam suas vidas atrapalhadas pelos rodízios dia e noite.

Um dia após outro e uma noite arrastada, gosmenta, no meio...

Passei a, sozinho, me movimentar, ir ao banheiro, tomar banho, carregar a arara pelos corredores (socialização e papos sempre iguais com outras e outros carregadores de araras ou de sacos de urina).

E aqueles dias e noites de calor intenso e ar parado do início da primavera. Eu saía, andava muito, na esperança de que o cansaço me levasse a algumas horas de sono.

Todas as manhãs, logo após o café, passam os Internos a quem coube tomar cada um como cobaia particular. Todos muito jovens e simpáticos. O “meu” pergunta como estou, faz minuciosa auscultação do coração e pulmões, solta minha faixa, aperta minha barriga e dá aquelas pancadinhas em cima de seus dedos pela barriga inteira, ausculta e diz que já há bastante movimento; examina os 29 pontos e diz que estão lindos. É o comentário também das enfermeiras que fazem os curativos. Não acho que sejam lindos, mas realmente feitos com tal perfeição pelo Dr. Cassio ou pela médica, também nissei, que o assistiu na cirurgia: até parece uma mensagem em Kanji...

De 3ª a 6ª pela manhã passa um Professor rodeado por 5 a 10 estudantes que dão aulas muito interessantes examinando e comentando sobre cada uma das cobaias. Terças e sextas são dias em que o Chefe da Clínica Cirúrgica, um nórdico ou descendente, alto e de cabelos grisalhos, dá as aulas, este sempre com bandos maiores de estudantes. Gosto muito do cara, que já conhecia desde o tempo de minha cirurgia anterior: baita experiência, enorme competência didática, simpático, prático e seguro, esta estada de agora é refresco diante da experiência de morte, ressurreição num mundo de sonhos maravilhosos, coerentes para mim em minha loucura, apavorantes para minha família e amigos: Viajando na Morfinese .

Um dia após outro, outra noite arrastada e gosmenta no meio...

A alta demorou ainda um pouco e finalmente pude me despedir dos colegas e amigos de ocasião, desejar-lhes... aquilo tudo que vem de dentro e convém.

FMFG - 9 de novembro de 2012



[1] Início de meu Poema “Paixão

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Tradições e relíquias que este povo tem e nem percebe




Parafraseando as palavras do poeta do amor e respeito às mulheres, Orestes Barbosa, no samba maravilhoso “Chão de Estrelas”,

“E eles pisam em seus astros distraídos...”

Nasci na São Paulo ainda provinciana de 1935, nela cresci e vivi até 1958, com poucas modificações que ainda não haviam apagado toda sua natureza original.
Morei em várias cidades brasileiras, viajei pelo mundo; minha esposa carioca, naturalizada paulistana, também.

Neto de três mineiros, bisneto de oito, passei por Minas, capital e várias cidades, nunca aqui morara.

Fados e fatos me deram a maravilhosa oportunidade de morar neste cantinho das Alterosas, bem distante da metropolitana Belzonte.

Ficamos e estamos maravilhados, apaixonados, por estas terras e gentes, cultas ou não, gentis, prestativas, simples no viver e ser, em que a cultura de tradições, usos e costumes, transparecem em cada um, em cada detalhe.

Esta região – como creio que em outras muitas destas minas gerais – tem artesãos de tudo: sapateiros, fotógrafos, serralheiros, vidreiros, costureiras e costureiros, torradores de café em pequeno varejo, doceiras e doceiros...
Todos artesãos de fato onde se leva um pedido, se vê e fala com uma pessoa, acerta detalhes, coisas que desapareceram de todas as capitais, onde tudo isto foi industrializado, transformado em redes impessoais de franquias.

Gente, gente agora minha, por favor tome consciência deste valor inestimável!  Governantes de nossas cidades e Estado, entendam, não permitam que este patrimônio se perca, se acabe!

Esta gente de toda a região ao entorno nos acolheu e nos trata como iguais, nos convidam para suas casas, para qualquer evento importante aqui e ali.

Neste ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2019, tive a honra de ser convidado para o casamento de dois jovens de cidade do entorno, muito queridos e por ali e aqui admirados.

Dentre tantas igrejas famosas, veneradas e muito frequentadas, escolheram a Basílica Nossa Senhora da Conceição do Rio Verde.

Não saberia chegar lá: contratei um motorista e fui.

Não poderia imaginar que um município com população tão pequena pudesse ter uma Catedral assim tão grande: Imponente, bonita, de arquitetura externa em neobarroco mineiro de linhas retas, interna em estilo neogótico despido, grande cúpula, com suas colunas e capitéis encimados por estátuas excelentes dos doze apóstolos.
Apenas as paredes ainda estão brancas, sem pinturas. Por elas esperam; pela fé inabalável, amor à tradição, generosidade, tenacidade e grandeza de seu povo, certamente virão.



Igreja repleta da gente do lugar e arredores, as mulheres e moças em seus melhores vestidos, cabelos, maquiagem, quase todas em belos sapatos de saltos altos.
Os homens, além do noivo, os das famílias e muitos padrinhos, todos em ternos pretos, gravatas claras; só eu e mais dois ou três de paletó e camisa social sem gravata.
Todos os outros em trajes informais, muitos bem simples, certamente seus melhores.

Com música e canto de pequeno conjunto de teclado, violino, violão, cantora e cantor afinados, esperamos a entrada da noiva, bonita em lindo vestido, que, princesa que sabe ser, por todos passa com sorrisos e acenos só para privilegiados.

Longa e tradicional Missa.
Vigário, próprio do local e redondezas, faz homilia e repete trechos das escrituras, palavras dele reais, para seu povo real. Nada de inovações e homilias famosas de vigários das capitais, com tiradas alegres, brincadeiras, citações não ortodoxas.

Finalmente a enorme fila de cumprimentos aos noivos e famílias que, sem demonstrar  qualquer cansaço, sorriam, simpáticos, corteses, alegres.

Ainda novato nestas plagas, o motorista contratado me levou à festa no enorme galpão, já preparado, enfeitado, mesas para três, e outras para muitos convidados – que eram TODOS que quisessem vir – com música ao vivo adequada.

Garçons e garçonetes servindo petiscos, Guaraná e Coca Cola; pedi cerveja que logo veio e meu copo foi reenchido assim que esvaziava.

Em mesa perto da entrada, casal que desconheço perguntou se podia nela se sentar: concordei com alegria. Pedi que não tomassem o resto da cerveja pois iria fumar um cigarro lá fora.

Chegados noiva e noivo, entrada ao som da música e palmas, todos de pé.

Ao longo do tempo, noivos, pais e irmãos passavam por todas as mesas cumprimentando e agradecendo aos presentes pela participação, sem pressa, com atenção e carinho; todos assim também passaram pela minha.

Não pude ficar para os pratos quentes, saladas e sobremesas: era tarde; longo caminho de volta para casa.

Ainda forasteiro, que experiência para mim indescritível, Maravilhosa!

Obrigado meu atual povo.

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