Você provavelmente já ouviu essa famosa expressão que nomeia uma série de crônicas de Nelson Rodrigues. Pois ela bem que poderia resumir esta obra de Flavio Musa de Freitas Guimarães. Entrelaçando fatos e emoções, Flavio nos leva a conhecer pessoas simples, como Francisco, Ivana, Gustavo, Talita, Padre Jacinto, Morena, Severino, Álvaro... Personagens de uma narrativa repleta de hábitos e costumes brasileiros. Cada um deles, a seu modo e trejeitos, nos revela um pouquinho de nós mesmos, posto que somos todos feitos de sonhos e esperança – assim acredito!O sonho de que amanhã será um dia melhor, a esperança de que a felicidade nos venha ao encontro. Além de sonhar e esperar, esses personagens – pessoas, ora essa! – vão vivendo, trabalhando, casando, amando-se.Há aqueles que se juntam para depois se separar, quando o amor não consegue superar a cor idêntica da rotina...E há aqueles que se encontram na música, porém se perdem nos braços da solidão. Como Francisco, o saxofonista tímido, sem sorte no amor, que arranca suspiro da plateia e vive mergulhado no próprio interior. De nós, pacatos leitores, ele consegue piedade, simpatia, compaixão. Tem ar de bom moço, que merece vencer na vida, embora não pareça ter gana para vencê-la. Por que será que ele é assim? Ou melhor, é assim pra quê?Francisco também não sabe o motivo, mas segue a vida, como cada um dos personagens, que, em dado momento, se encontram. Suas vidas se cruzam, suas histórias se entrelaçam, se completam, se misturam. E nesse balé de idas e vindas, aventuras e desventuras, amores e dissabores, o enredo criado por Flavio nos prende a atenção, nos prega os olhos, nos faz querer saber: pra quê?Dono de um texto enxuto, mas repleto de conteúdo, poesia (porque a vida é cheia dela, basta observar) e de expressões peculiares, o autor vai costurando uma narrativa que, apesar de falar da rotina de mulheres e homens comuns, acaba por nos surpreender. Quem ia esperar, por exemplo, que Gustavo, trabalhador como só, todo atencioso com a esposa, adorável com as filhas gêmeas, fosse fazer o que fez todo aquele tempo? E pra quê? Nem Francisco, tampouco Ivana ou Talita poderiam imaginar. Gustavo escolheu um caminho, e se fez do jeito certo, se se arrependeu, talvez não caiba ao leitor julgar, mas que vale a reflexão, isso vale! Do início até o último ponto, até o estouro final – se me autoriza a dizer! – vale não só a reflexão, como também a perplexidade e o espanto: pra quê?Cada personagem, repito, que Flavio eterniza neste livro é gente como a gente, que não acumula apenas sonhos, alegrias e vitórias. Eles batalham pelo ganha-pão, pelo futuro, em busca do amor. Na peleja do dia a dia sem ter certeza de quê, sem saber ao certo pra quê, vão seguindo – afinal, a vida é como é.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Pra Quê?
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
Intervalos - Lindo e tocante texto de Ana Claudia
Intervalos
Ana Claudia Leite Dantas Ferreira.
No ano 2000 comecei a me comportar como urso. Levei meu menino ferido para uma toca e ficamos ali, no breu, tratando dos ferimentos. Pouco tempo passou e tornei-me uma exímia ursa. Nos dias quentes, cegada pela luz do sol, ia à caça de alimento. Voltava com aquilo que alcançava e que já não saciava. Aos poucos, o inverno se estendia até não haver mais verão, nem sequer a luz do dia. Na toca, cada vez mais escura, havia um ralo calor de origem desconhecida. Eu me sabia ali com meu filho, e só isso. Um dia senti a força das mãos delicadas da minha filha e vi que o escasso calor se acrescia. Não punha mais o rosto para fora da toca, pois, lá, o inverno era intenso e o frio açoitava. Outro dia senti que ali haviam mais braços, eram poucos, mas fortes, e o calor acrescido começava a ser suficiente. Éramos cegos para o presente e para o futuro, mas os olhos fechados fez nascer a visão, que fugia por entre os poros da pele, iniciando uma luz rala no recinto. A luz somou-se ao calor que se aproximava do saudável. Das feridas do meu filho, algumas cicatrizavam, mas eram muitas aquelas em carne viva. O tempo longo era também um tempo muito curto. A vida aflita se estabelecia, a visão foi vista vindo da alma, e o calor, já se sabia, tinha origem no coração. A aflição aos poucos mudava de cor e deixava-se cobrir de calmaria. O amor se insinuava do riso. As pessoas que nos acresciam calor e luz eram poucas, porém enormes; e nada pediam em troca. Passaram-se dez anos e, quando já não havia mais feridas no corpo do meu amor, quando já nem se via cicatrizes, num dia de calmaria com luz boa e agradável calor, de súbito rompeu-se o vácuo, meu filho rasgou-se em lança, montou o seu unicórnio e foram. Em instantes, alados, explodiram as paredes terrestres e jogaram-se no sideral. De lá, despejaram-nos o dia, que se abriu em verão intenso e cintilante. Fez-se a música nos ouvidos. Era meu menino despedindo-se daquela gente boa e paciente que não deixou a sua luz apagar. E eu estava ali entre eles, cansada. Devagar e em silêncio, fui, só, em ré, para a mesma toca onde aprendera a morar. Ali fiquei. Já não fazia mais frio, já não fazia mais nada. Não era claro ou escuro. Era oco, e o silêncio absoluto gritava um doído agudo infinito que derrubava meu corpo ao relento... Jogada ali a esperar, esperar..., permaneci por bom tempo. Passaram-se quatro anos, desde aquela morte que não veio para me buscar. Aquela que levou de mim o meu filho, o meu ar. Foi quando vi minha menina, singela, ao meu lado, me segurando no braço, com a grande força de suas delicadas mãos. Linda foi essa visão que me fez voltar da caverna! Agradeço aos amigos que compareceram. Agradeço aos meus meninos, meus amores, é por eles que morro, é por eles que vivo e é deles o tecido da minha vida. Obrigada Pedro, obrigada Rita. (Ana Claudia, em Intervalos.)
Veja em sua página no Face Book mais excelentes textos desta autora:
https://www.facebook.com/adantasf/about?section=overview
terça-feira, 26 de agosto de 2014
Já raiou o dia...
Agosto de 2014
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
Reviravolta.
terça-feira, 18 de março de 2014
O ninho.
Foto de Adilson C. Constantini |
quinta-feira, 6 de março de 2014
Feras domadas.
Chegam a meus pés e o lambem, domadas, mal murmurando arrulhos.
E vêm outras atrás, tudo se repete, e repete. Festa para olhos e ouvidos.
É finalzinho de final de férias, praia ainda cheia cinco e meia da tarde. Forando eu e os “Jangadeiros da Areia”, a que já me referi, creio que poucos “nativos” ainda estejam aqui.
Cai a tarde sem barulho, de mansinho, sem controle, como deve. É privilégio de poucos a curtir e entender.
Com este calor extremo (de que não reclamo) beija flores não mais vêm beber em nossos bebedouros, pombas chegam mais tarde, e gaivotas só quase à noite. Só os urubus estão lá em cima, bem acima, sobre morros e florestas, num céu todo azul, sem nuvens que nos incitem a sonhos, sem nos deixar mensagens.
Este pai, ótimo professor, treina o filho a controlar a bola, todos os dias. O pequeno progride.
Não deu para olhar sem muito disfarçar, mulherada em trajes mínimos, biquínis e fios dentais; esta, em biquíni tradicional, é uma escultura, uma beleza rara e incrível! Nem olha a seu redor; sabe-se linda e objeto de admiração ou desejo da marmanjada. Despreza a todos. Talvez venha a lamentar ter perdido alguém que a amasse e a quem pudesse amar.
Priiii priii, apita o guarda-vidas.
Estes estrangeiros não entendem o que seja a faixa vermelha entre três estacas de “Perigo”. Pitangueiras é segura, mas uma “falsa segura”, segundo os guarda vidas. Tudo bem fora e se possível longe, para a esquerda ou direita da faixa.
Há duas correntes, da direita e da esquerda, que jogam a gente no canal que é profundo e leva a quem lá se perder para a direita, até as pedras das Astúrias; nada de muito sério se você não se apavorar, mas “gringos” e até nativos distraídos se apavoram e, sem ajuda, se afogam.
O porto de Santos deve estar descongestionado: deste ponto já cheguei a contar 16 navios em espera, e estou longe ainda da entrada do porto. Hoje são só três, um cargueiro e dois tanqueiros. Já está difícil ter certeza com a bruma que se avoluma ao longe, logo mais serão luzes bordejando a linha d’água.
Está na hora dos jangadeiros da areia recolher velames e tralhas e ir repousar. Aqui no pedaço de praia a que sempre venho há o Mané, o Chicão e o Bola; mais para a direita o JF Pastéis. O Bola sempre fica até mais tarde, JF até que mais ninguém querendo qualquer coisa; mas se chego cedo sou freguês do Chicão. E lá vem ele assoviando suas músicas que ninguém entende, mas se sabe que é ele que está por perto.
- Oi, patrão, vai uma caipirosca?
- Obrigado, Chicão, hoje só vou de água de coco.
Vou também ser chacoalhado na lavanderia do mar duas ou três vezes. Volto à minha cadeira, mais sol que me lambe e amorenece, mais brisa que me seca, mais um cigarro, e volto à lavanderia donde saio cansado e refeito.
Fico ali até quase 8 da noite, olhando o mar e os últimos reflexos do sol nos prédios lá de Astúrias, ensimesmado.
Onde estão as flechas que este velho guerreiro disparou?
Sonho encontrá-las todas, se não amanhã depois, depois, mas sempre.
Acordo com a marola batendo a meus pés; lua nova, maré encheu rápido. Perfume e bruma de maresia invadem a mim, meu redor, toldam vista e visões. Assim se pode ver melhor...
FMFG
domingo, 16 de fevereiro de 2014
Fernando Pessoa por Joao Villaret - Tabacaria
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
Feliz Dia Novo
Dia novo, nem tudo velho.