A fofoca, origem do desenvolvimento da comunicação oral, tornou-se
linguagem graças ao repúdio ancestral ao fake.
Advertência:
Embora
tudo abaixo seja a verdade mais atual do conhecimento que as ciências nos oferecem,
preciso dizer que, em meu filme, aparentemente vejo um universo, os ambientes
em que me vejo estar, vejo cores, cheiros, quando possível toco-os, apalpo-os,
e sinto seres e coisas a meu redor, gosto de uns não de outros, amo e sou amado;
às coisas falantes converso sobre estes e outros temas, e também, aparentemente – pelo que creio ouvir –, vêm
escutam, pensam, discutem, agem, e sentem as mesmas coisas e emoções.
Aí
se incluem as Ciências.
Você
vive filme parecido? Se sim ou não, vou em frente.
Nossa linguagem
evoluiu como uma forma de fofoca. De acordo com essa teoria, o Homo sapiens é antes
de mais nada um animal social. A cooperação social é essencial para a
sobrevivência e a reprodução. Não é suficiente que homens e mulheres conheçam o
paradeiro de leões e bisões. É muito mais importante para eles saber quem em
seu bando odeia quem, quem está dormindo com quem, quem é honesto e quem é
trapaceiro.
(Ver http://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674363366 ;
este livro pode ser baixado grátis em PDF).
No entanto, como os
instintos sociais dos chimpanzés, os dos humanos só eram adaptados para
pequenos grupos íntimos. Quando o grupo ficava grande demais, sua ordem social
se desestabilizava, e o bando se dividia. Mesmo se um vale particularmente
fértil pudesse alimentar 500 sapiens arcaicos, não havia jeito de tantos estranhos
conseguirem viver juntos. Como poderiam concordar sobre quem deveria ser o
líder, quem deveria caçar onde, ou quem deveria acasalar com quem?
Após a Revolução
Cognitiva, a fofoca ajudou o Homo sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis.
Mas até mesmo a fofoca tem seus limites. Pesquisas sociológicas demonstraram
que o tamanho máximo “natural” de um grupo unido por fofoca é de cerca de 150
indivíduos. A maioria das pessoas não consegue nem conhecer intimamente, nem
fofocar efetivamente sobre mais de 150 seres humanos.[1]
Ainda hoje, um
limite crítico nas organizações humanas fica próximo desse número mágico.
Abaixo desse limite, comunidades, negócios, redes sociais e unidades militares
conseguem se manter principalmente com base em relações íntimas e no fomento de
rumores. Não há necessidade de hierarquias formais, títulos e livros de direito
para manter a ordem3. Um pelotão de 30 soldados ou mesmo uma
companhia de cem soldados podem funcionar muito bem com base em relações
íntimas, com um mínimo de disciplina formal. Um sargento respeitado pode se
tornar “rei da companhia” e exercer autoridade até mesmo sobre oficiais de
patente. Um pequeno negócio familiar pode sobreviver e florescer sem uma
diretoria, um CEO ou um departamento de contabilidade.
Mas, quando o
limite de 150 indivíduos é ultrapassado, as coisas já não podem funcionar dessa
maneira. Não é possível comandar uma divisão com milhares de soldados da mesma
forma que se comanda um pelotão. Negócios familiares de sucesso normalmente
enfrentam uma crise quando crescem e contratam mais funcionários. Se não forem
capazes de se reinventar, acabam falindo.
Como o Homo
sapiens conseguiu ultrapassar esse limite crítico, fundando cidades com
dezenas de milhares de habitantes e impérios que governam centenas de milhões?
O segredo foi provavelmente o surgimento da ficção. Um grande número de
estranhos pode cooperar de maneira eficaz se acreditar nos mesmos mitos.
Há 2 milhões de
anos, mutações genéticas resultaram no surgimento de uma nova espécie humana
chamada Homo erectus. Seu surgimento foi acompanhado pelo
desenvolvimento de uma nova tecnologia de ferramentas de pedra, hoje
reconhecida como uma característica decisiva dessa espécie. Enquanto o Homo
erectus não passou por novas alterações genéticas, suas ferramentas de
pedra continuaram mais ou menos as mesmas – por quase 2 milhões de anos![2]
Por sua vez, desde
a Revolução Cognitiva, os sapiens têm sido capazes de mudar seu comportamento
rapidamente, transmitindo novos comportamentos a gerações futuras sem
necessidade de qualquer mudança genética ou ambiental. Por exemplo, considere o
advento repetido de elites sem filhos, como a classe sacerdotal católica, as
ordens monásticas budistas e as burocracias eunucas chinesas.
Mas, o que aconteceu antes para que surgissem
os mitos?
A existência de
tais elites vai contra os princípios mais fundamentais da seleção natural, já
que esses membros dominantes da sociedade deliberadamente abrem mão da
procriação.
Enquanto, entre os
chimpanzés, os machos alfa usam seu poder para ter relações sexuais com tantas
fêmeas quanto possível – e, consequentemente, gerar uma grande proporção dos
filhotes do grupo –, os machos alfa católicos se abstêm completamente das
relações sexuais e dos cuidados dos filhos. Essa abstinência não resulta de
condições ambientais singulares, tais como a carência severa de alimentos
ou de parceiros em potencial. Tampouco é resultado de alguma mutação genética peculiar.
A Igreja Católica sobreviveu por séculos não por transmitir um “gene do
celibato” de um papa ao seguinte, mas por transmitir as histórias do Novo
Testamento e do direito canônico católico.[4]
Sim, a melhor explicação do nascimento da comunicação
verbal articulada entre os homo sapiens arcaicos é esta do autor, embasada no
trabalho de Robin Dunbar “Grooming, Gossip, and the Evolution of Language”, já citada acima.
No entanto, lá atrás, um pitecantropo erectus, ou
vários hominídeos e homo, homo erectus, anão homo floresiensis, homo denisova,
homo hábilis, homo neandertális, um ou vários em cada região, estavam
acostumados a ver sua figura grotesca (creio que eles próprios nada viam de
belo ali) refletida num lago, numa poça entre rochas vulcânicas.
Possivelmente o primeiro ancestral nosso a ver sua
imagem vestida ‒ de folhas e
ramos, que usou para se proteger do sol causticante da África Equatorial e
Setentrional da época ‒, tenha sido um
pitecantropo; dadas suas limitações cognitivas, “ele viu o que fez e achou
bom”; achou bom, e seu exemplo tenha servido apenas para a disseminação entre
eles desta prática. Passaram a rejeitar o fake que haviam sido, ainda que isto
acontecesse sem intenção explícita, mas bom para proteger o corpo.
Mais tarde, os migrantes da África para as regiões
geladas da Europa e Ásia para enfrentarem o frio, ou os que permaneceram na
África, seja para se protegerem de mosquitos ou aves incômodas, ou a pele leve do
ardido do sol, um aqui ou ali, um ou vários em cada região, ao mesmo tempo relativo (digamos um “mesmo tempo” de
50 mil anos) colocaram sobre o corpo a pele de um animal que caçara, presa por
embiras ou folhas flexíveis e se adorou ver assim! Repudiou a imagem anterior
que considerou “fake”, inconveniente. Este um aí que agora vira, sim, é que era
ELE.
Além e por sobre isto, seu novo eu, lhe deu
distinção e identificação dentro seu grupo ou bando; o “Leão Alfa” passou a
usar a mais original e ostentosa das “peles-roupas”, símbolo de sua autoridade.
Em breve os encontros, reuniões, conversas,
discussões, só viriam a ter seriedade, verdade, credibilidade, através de sua identidade,
por estarem vestidos. Em seguida por estarem vestidos apropriadamente conforme
a situação e era; “maltrapilhos” eram – e são – indignos de serem vistos ou
ouvidos. Longe, no remoto e esquecido passado, ficou o fake primevo de que vêm
se alimentando todos os outros.
Comprovações científicas demonstram que o uso de
vestimenta remonta a cerca ou mais de 170 mil anos.[5]
Descobertas e registros arqueológicos de agulhas de
ossos de veado de ponta agudíssima agulhas de osso de ave, longas, para costura,
materiais leves e de peles claras e também agulhas de costura de marfim mais
resistentes. Fósseis destas agulhas datam de 30 a 60 mil anos.
Daí em diante estes disfarces foram se desenvolvendo
até o ridículo a que chegaram no Século XIII, sempre removendo, repudiando o
“fake” anterior. Hoje em dia, a indústria da moda decreta “fakes” a cada
estação e ano, para os ressuscitar, ligeiramente diferentes, no ano
seguinte.
“Mas a
característica verdadeiramente única da nossa linguagem não é sua capacidade de
transmitir informações sobre homens e leões. É a capacidade de transmitir
informações sobre coisas que não existem.
Até onde sabemos,
só os sapiens podem falar sobre tipos e mais tipos de entidades que nunca
viram, tocaram ou cheiraram.
Lendas, mitos,
deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva.
Mas a ficção nos
permitiu não só imaginar coisas como também fazer isso coletivamente. Podemos
tecer mitos partilhados, tais como a história bíblica da criação, os mitos do
Tempo do Sonho dos aborígenes australianos e os mitos nacionalistas dos Estados
modernos. Tais mitos dão aos sapiens a capacidade sem precedentes de cooperar
de modo versátil em grande número”.
Sobre os mitos, “A criação do homem nos mitos das origens” é trabalho antropológico profundo e bem documentado, que deve ser
lido, até mesmo antes de continuar a les este texto[6]. Interessante e oportuno, também, ver uma pequena amostra mais
detalhada de algumas mitologias comparadas, e as muitas dezenas de mitos da
criação ao redor do mundo, com suas localizações e breve referência: clique aqui[7].
Seria impossível pensar que um
grupo, mesmo pequeno, de sapiens pudesse conversar e discutir coisas e temas,
especialmente conceitos intangíveis, símbolos, lendas, fatos fictícios, de
forma séria e convincente sem vestimentas.
Imagine, hoje uma reunião de
Diretoria de uma empresa com todos os presentes nus: dá para imaginar que fosse
produtiva, que se chegasse a um resultado crível e realista do assunto tratado?
Com respeito, seriedade, e consecução de resultados?
E que tal uma reunião do
Presidente da República com seu ministério, assistentes e jornalistas, todos
ridiculamente pelados? E uma Assembleia Geral da ONU?
Eu acho que, a menos de
mulheres e homens jovens e bonitos para o padrão de cada época, nós somos muito
feios e desengonçados. Em particular os do hemisfério sul, exceções raras a negros
da África; temos troncos longos, pescoço e pernas curtos, nada de “donne (ed uomini...) di gambe lunghe” como são comemoradas na
Itália, e gente típica de países setentrionais.
Tenho saudades do tempo em que
trabalhava!
Durante este longo tempo,
muitas vezes fui obrigado, por profissão e responsabilidade, a participar de
conferências, debates e – ou pior –, de apresentações em verdadeiros circos para
grandes audiências em teatros e centros de convenções e/ou de falas de vaidosas
personagens para pequenos grupos, num café da manhã, almoço ou jantar,
vomitando bobagens, raramente sabedoria, de forma arrogante e dogmática; em
geral falavam besteira, pontificavam conhecimento pífio ou errôneo; ridículos.
Aguentava e me divertia
tirando a roupa do ou da exibicionista, com suas barrigas, bochechas, membros, veias
saltadas, peitos ou genitais caídos. Tinham, então, a respeitabilidade que me
mereciam. Mensagens com que talvez pretendessem nos anestesiar, que assim se tornavam
o que eram: quadros idiotas, vazios, emoldurados por vaidade e empáfia.
Conclusão:
Sem a descoberta do “fake” do
inspirado antepassado, a fofoca não teria se desenvolvido em linguagem,
linguagem cada vez mais complexa e precisa; não teria havido civilização.
Ao escrever isto, me veio à
cuca um pensamento: a própria Teoria da Evolução relata uma longa série de
eliminação de “fakes”, uma mutação rejeitando, abandonando a forma anterior
mais imperfeita, mais “feia”, por inútil, desengonçada.
Flavio Musa de Freitas Guimarães
8 de setembro de 2019
[1] Sim,
de coberturas de peles existem provas de que o Homo começou a utilizá-las há
mais de 1.700 anos. Em pequenos grupos íntimos, a cobertura deve ter ajudado a
identificar quem o comandava: o macho Alfa, usava as melhores, maiores, seja
por ter caçado o animal de que tirou a pele ou roubado de outro mais fraco.
[2]
Interessante texto sobre a convivênciae cruzamentos de Homo Sapiens e Neandertais
e o desaparecimento destes últimos: https://pt.thpanorama.com/blog/historia/homo-neanderthalensis-origen-caractersticas-alimentacin.html
[3] https://drive.google.com/file/d/1Dc-3e6YSKdo44FEggUgSTRZ5BR6s6wY3/view?usp=sharing
[4]Todo
o texto em itálico é do original “Sapiens” de Yuval Harari https://pt.wikipedia.org/wiki/Sapiens:_Uma_Breve_Hist%C3%B3ria_da_Humanidade
Versões completas em ePub e PDF podem ser baixadas
grátis.
[7] https://drive.google.com/file/d/1m2BKVLHCUoqJkppWvXAO5vz0mK2aPKm9/view?usp=sharing