Eles sabiam que estavam mortos, mas os outros não.
Agiam com pretensa normalidade, falavam com as pessoas,
atendiam e falavam ao telefone, iam ao mercado comprar o mínimo de bens para
fazerem a pouca comida, que lhes sabia insossa e que mal comiam. Imitavam o que podiam do que precisavam fazer os mortais.
Andavam pelas ruas como sonâmbulos, conscientes de onde
estavam e de quem eram, como se estivessem apartados, no reverso de um útero em
que viam nascer os dias em mundo inalcançável.
Ligavam a TV e assistiam a tudo como novelas esdrúxulas, sem
sentido ou fim. Mas assistiam até caírem de sono, porque o inferno era a
vigília.
Dormiam picado, mas tinham sonhos! E qualquer sonho era melhor que o
dia que viria.
Ninguém sabia que estavam mortos no universo a que teimavam
não abandonar.
Daqui todos podemos vê-los, mas nenhum de nós se importa com
nada a não ser com a inutilidade de cada um, com o fato de não termos destino.
Não nos falamos; vagamos, sempre andando sem rumo ou com rumos de que nem nos
damos conta.
Não sabemos porque estamos aqui; isto poderia ser semelhante
ao “Purgatório”, onde havia a certeza de um futuro radioso. Mas a Igreja nos
privou desta alternativa.
Quando eu também estava no universo deles, havia livros,
textos, filmes, sobre Zumbis. Não somos nada daquilo. Somos sim asquerosos,
feios, deformados, mas pelo nosso sofrimento, inconformidade, sem alternativas,
ou vislumbre de futuro. Nosso tempo é atemporal, intemporal. E vocês daí deste
universo não podem ter a mais vaga ideia do que seja isto.
Não dormimos, não comemos; aliás pensar em repastos de nossos
sonhos, de que serviria? Aqui não há nada a se comer senão a cada um a si próprio, se
consumindo em desejável e ansiado banquete.
Mas eu disse que aqui ninguém se importa com nada; e é
verdade. E sei que há outros universos em que muitos se preocupam e se ocupam
destes personagens em seu autoexílio.
No entanto mesmo que seja o que vocês queiram de chamar, um
Zumbi, uma alma penada, um egresso do Purgatório, talvez eu seja um só aqui que
se importa e muito com o casal.
Entendo bem sua indignação, seu inconformismo em aceitarem
seu destino mais inútil ainda, talvez mais duro ainda, de se subjugarem e virem
para nós.
Nenhum de vocês conhece o que seja o verdadeiro exílio. Havia
livros e relatos sobre isto aí; nada que possa exprimir, minimamente, o que o
exílio é de verdade.
E aí vão eles pensando conseguir ajuda de parentes e amigos,
de que tiveram de alguns, mas insuficientes; tentando acordos com Bancos e
instituições, esperando por liberações de créditos que têm e tiveram, esperando
por justiça.
Ainda não se conformaram nem aceitaram a razão de sua morte;
foi aquela sucessão de meses de desespero, apenas por escolhas erradas, jamais
por pecadilho que fosse, que não cometeram.
São como crianças na Terra do Nunca: abominam crescer e ter
de vir para aqui.
As responsabilidades que tinham para com filhos e parentes,
para com as regras da sociedade como tal, a impotência contra os senhores do
dinheiro e crédito, que os foram minando forças do intelecto, do espírito, em
seguida dos corpos, fizeram, por misericórdia, que parassem seus corações.
Não entendo nem sei de milagres: se deles soubesse não
estaria aqui.
Mas espero que alguma coisa lhes aconteça que
faça com que consigam esperar a morte natural, sem chegarem a tanto, a tanto de
virem para cá.
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