domingo, 17 de julho de 2016

O Agente Ambiental


Com a mão esquerda puxava o carrinho de feira que encontrara num condomínio “dos bacana”, ainda em bom estado; cheio de latinhas que amassara com os pés, protegidos apenas por sandálias Havaianas quase novas. Com duas sacolas pretas de lixo amarradas uma de cada lado do carrinho, repletas também. Na mão direita outra sacola igual.

Havia sido um dia de sorte e de muito trabalho, mas tinha ali uma riqueza que nunca conseguira, mesmo nos dias de fim de ano e carnaval.

Vendendo latinhas sem amassar ganhava “três real e dez” por 70 a 75 latas, que faziam volume, logo enchiam os sacos; amassadas, ganhava a mesma coisa por 25 a 30. Deu trabalho, cansaço, dor nas pernas, calcanhares e solas dos pés, mas valeu a pena! Calculou que tinha hoje e ali mais de 500 latas amassadas; de cabeça fez contas: Mais de um Conto e quinhentos!

38 anos, metro e 75, cabelos loiros, morenão temperado por muitos sóis, revenido em tempestades, espadaúdo; morador de rua safo, tarimbado, era simpático, cativante, vocabulário e Português bem razoável, que usava conforme ouvinte e ocasião. Nada de fulerage.
Maria e Toninho ficaram na casa dos pais de Lizete, ele ali era demais...

Conhecia todos os garçons das choperias Rufino, Divino’s, da vendinha de ostras e gelo e da de chope e comida baiana, na Praça da Bandeira, abaixo da Secretaria de turismo e do Shopping La Plage. E todos os barraqueiros de praia dali até o Sobre as Ondas, do Avelino’s e do quiosque; cumprimentava os policiais, que sabiam de sua catadura, e respondiam gentis, com sorrisos.

Foi no quiosque do Avelino’s que ganhou suas Havaianas. 

Pediu um cigarro a um senhor que fumava seu cigarro: intuiu ser simpático.

- Claro! Dou-lhe dois, um para agora e outro para mais tarde.

- Muito obrigado! Posso também pedir-lhe o isqueiro?

E o senhor deu-lhe trela. Entraram a trocar ideia, o senhor se encantou. 

Quando ele se despediu, o “véio” lhe disse:

- Quero trocar minhas sandálias com as suas, para me lembrar de nosso papo. Ele agradeceu mais uma vez e, claro, aceitou. 

Verãozaço passado, pegou as latinhas que Mané, Chicão, e Bola guardavam para ele, tomou água do garrafão com torneira da barraca do Chicão, continuou pela praia, cantando baixinho, catando, pedindo aos locais e turistas, que enchiam as areias e mar, se podia pegar as vazias.

Gritaria, confusão!

Um bandido que se fazia de catador tentou arrancar a sacola do homem que acabara de chegar com sua esposa ao guarda-sol que o pessoal de seu prédio já fincara e abrira. 

Ele reagiu, puxou a sacola com violência; facada na barriga e o meliante correu com a sacola; ele e outros correram atrás, ele era o mais rápido. 

O quadriciclo da PM estava logo à frente, um tiro e o careta caiu morto; celular, documentos, dinheiro espalhados a seu lado.

A Unidade Móvel da PM, que quase sempre está estacionada perto do Avelino’s, estava. 

Quando chegou de volta, policiais e enfermeiros o examinavam: morto! Dois mortos!

Permaneceu junto à esposa, tentando, como muitas outras pessoas, consolá-la.

Assim que ela se levantou, entregou-lhe os pertences que pegara.

- Obrigada pela coragem e ajuda. Fique com o smartfone que não tem nada, ele comprou ontem, nem usou; o dinheiro é pouco, mas deve ajudar. Anote aí os dados para falar com a operadora dizendo que é ele. Não tinha onde e como anotar; Bola, caneta na orelha, anotou para ele em comanda vazia.

Assim ganhou seu smartfone de última geração...

Nos fins de tarde saía do calçadão, na altura do Avelino’s, em direção a uma rua sem saída ao pé da serra, onde às vezes tirava a roupa e, de calção de banho ou cueca discreta, banhava-se e enchia duas garrafinhas com a água límpida da fonte. Ali guardava o produto do dia, num terreno-garagem com um barracão, onde morava mais um de seus chegados, Zé do Norte, que cuidava do “negócio”. 
Entrava e os três cães vira-lata, de dia com longas e fortes correntes, pulavam nele, cheiravam, lambiam-no inteiro, sua boca, seu nariz... O grandão o derrubou duas vezes com seu “carinho”.

Por duas vezes, no inverno, se sujeitou a ir até o Albergue Municipal José Calherani, em Vicente de Carvalho, para ter banho de chuveiro morno, comida, roupa lavada, inda que não passada.

Foi um seu colado da choperia que lhe deu a dica: Um bacana tinha reunido pelas mídias sociais alguns clubes da capital e outras cidades do interior de vidrados em cerveja e chope para uma festa no próximo feriadão, de sexta a domingo. O patrão e os outros da praça foram avisados; já contrataram mais engradados, barris, petiscos, cadeiras e mesas; o bacana conseguiu que a Prefeitura não desse a notícia, mas pela praça corria de boca a boca.

Veio o feriadão, céu nublado, chuvisco intermitente. Mas a tropa nem se tocou: foi festa de manhã até a madrugada.

Coleta mais que farta, ajudado por seus amigos das choperias, botecos e quiosques, que também lhe davam latinhas esquecidas nas mesas.

Hoje estava muito cansado mesmo; no caminho sentou-se na mureta que separava o “Por Quilo” da Mercearia.

Tirou a mochila, já bem trabalhada, procurou a garrafinha de cachaça, que lhe dava a ilusão de energia, inda que temporária e falsa.

Nada! Vazia! Pegou a outra garrafinha ainda quase cheia de água, bebeu quase tudo.

Recostou-se na parede áspera, fechou os olhos. Ouviu passos arrastados e hesitantes: era um senhor careca de longos bigodes e barbas grisalhas, por onde fluía a fumaça de seu cigarro.

Outra vez ousou pedir:

- Moço, poderia me dar um cigarro?- Claro, meu filho, aqui estão dois.-Muito grato, senhor, e poderia me emprestar o isqueiro?

Aceso o cigarro,

- Mais uma vez obrigado!

- Por nada, filho, que Deus o abençoe.

- Ao senhor também!

Parece que “dois” era seu número de sorte.

O “Por Quilo” ia fechar; o rapaz que veio puxar as portas corrediças o viu, reconheceu.

- Espere um pouco que vou trazer uma quentinha com restos bons, mas não conte para o patrão, tá?

Comer, depois de tanto tempo naquele dia, lhe deu tonturas, sono.
Cochilou ali mesmo, bem agarrado a seus pertences, por não sabe quanto.

Seu “Rolex” indicava onze e quinze!

Três quadras dali até o terreno, doze até o mais próximo ponto de venda. Ainda dava tempo, fechava à uma. Desta vez era muita coisa, melhor ir direto. 

Ligou pro Negão, achou melhor ter sequela: “Te dou cinquenta prata”.

- Ô maluco, ´Tá pirado? ‘Tô de bobera, não embaça, te encontro na rota.

Lá estava Negão, sentado num tronco, puxando um charuto. Ele experimentou uma vez, ficou mareado, vomitou; nunca mais!
Foram colados; perto do ponto,

- Tu vai, fico aqui de campana.

Entrou, esperou a pesagem, recebeu um Conto e 620, pegou os maços, enfiou na mochila para que quem quisesse ver, visse; só que, rapidamente, tirava a mão e enfiava no bolso da calça. Deixou as moedas na mochila.

Foi pela direita; mas, mesmo longe do barranco, dois brucutus, facões na mão, rápido nele.

- Carma, malucos! Se é o capim que querem deixa eu tirá a mochila.

- Um grito rouco, um baque: Negão furou um abaixo do omoplata esquerdo.

O outro se virou, ele girou a mochila e tacou-lhe na cuca; a panela de ferro fundido amassou sua têmpora esquerda.

Os dois mortinhos da silva.

- Vô chamá os porco.

- Pirô de vez, mano? De butuca aí que vô chamá o Cabeça.

Pediu o isqueiro pro Negão, acendeu o outro cigarro que o velhote lhe dera.

Chegaram quatro parrudos de bike, três enxadas, uma picareta.

- Quatro!

- Carma, esses aí num cagueta, sabe, caguetô, o Cabeça apaga.

Arrastaram os corpos bem pra dentro da floresta, com cuidado para não quebrar galhos e ramos, não deixar pegadas fundas. 

Abriram vala bem funda, deixaram boa carga de fertilizantes, agentes ambientais a contragosto. Espalharam folhas; flores simbólicas.

Voltaram arrastando de leve as pás por detrás, apagando rastros.

Jogaram terra e pedrinhas, mais terra, por cima do sangue.

Deu 20 pratas para cada um, e as 50 pro Negão. Dormiu em seu barraco; de manhã, café com leite e rodelas de pão, que Jacinta preparara.

Despediu-se, agradeceu,

- Mermão, uma mão lava outra; tu já me tirô de confas das brabas, lembra?

Foi direto para a Caixa, falar com a Antonieta: queria ficar com 250 pratas e aplicar o resto.

Antonieta falou baixinho: “Aqui os rendimentos são bons, mas se você aplicar em bancos menores ganhará mais e com segurança”; deu-lhe uma lista de bancos com garantia de crédito.

No segundo foi atendido com atenção e interesse, aplicou metade em CDI, metade em CDR.

Foi direto para a Secretaria de Meio Ambiente, perguntou se tinham vagas de agente. Tinham, mas o senhor lhe disse que o concurso iria demorar e era difícil; recomendou que começasse como Ajudante e, depois poderia crescer na carreira, dependendo de seu desempenho.

Saiu já com o uniforme na mochila, começaria no sábado.

Lá no terreno-estacionamento, acertou com Zé do Norte morar lá por uns tempos, por 200 paus por mês.

Isto aconteceu no outono passado; só voltei ao Guarujá no meio do verão.

Belo dia, aliás belo mesmo, sentado em minha cadeira, embaixo do guarda-sol, avistei-o de longe, macacão verde, percorrendo a beira-mar, arrastando, com ancinho e rede de finos fios de metal, a sujeirada com que que turistas e navios de carga emporcalham o mar. 

Agente Ambiental, sei que o será, muito não tarda.


   
       

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