sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Dias lentos, noites arrastadas

Dias lentos, noites arrastadas...

Aqui não se dorme nunca:
Só se cochila.
Quis ver minha amada.
A janela está longe,
Mas sei que está lá
Fazendo feliz o mundo
Em nome de nosso amor.[1]

Chuááá! Um de meus colegas (companheiros passou a ser confundido com “cumpanheros”...) de enfermaria deu descarga na privada, na gosmenta madrugada.

Céu escuro, me parece, mas não se sabe ao certo a hora neste início de horário de verão.

Escuro aqui? Não; há sempre luzes, no corredor; lá de fora anúncios piscantes e janelas iluminadas por que se advinha gentes madrugantes, imagens vindas do mundo vivo-dormente, nos chegam pelas janelas.

Chamo a enfermeira; ainda não consigo descer da cama e ir ao banheiro sozinho, inda mais enrolado nesta faixa elástica que me comprime barriga e costelas, carregando esta “arara” pendurada de saquinhos e tubos. Preciso só fazer pipi, mas nunca consegui nem consigo usar o “papagaio”, custo muito a urinar e, ao final, sempre molho a cama! Lança curta, ojeriza psicológica ou pavor atávico daquela boca?

Começam os chatos “quero-queros”, seus irritantes, altos e agudos pios, “quiiik, quiiik, quiiik...”; daqui a pouco serão os bem-te-vis logo acompanhados pelo som mavioso dos sabiás: saudações alegres ao dia que vai começar. Minha passarada: araras, papagaios, quero-queros, bem-te-vis, sabiás...

Será dia curto para quem tem tanto que fazer, tantas ocupações e preocupações. Aqui será longo; mais cheio de movimentação, mais alegre, às vezes angustiante, à espera de mais uma gosmenta noite. 
- Seu Flavio, uma picadinha, uma injeçãozinha subcutânea, dói um pouquinho; onde quer que eu aplique, na perna ou no braço? (Tudo no diminutivo... rs).
- Pra mim tantôfaz; onde for melhor para você.
Doeu um nadica. A enfermeira me explica que é para evitar coágulos travessos.    
- Seu Flavio, vamos ver a pressão e temperatura?
- Manda ver, menina.
(Pressão um pouco mais alta que o normal; também, fiquei 5 dias sem minha Losartana... Hoje vão começar a me dar de novo).
- Uma picadinha no dedinho. (Sempre diminutivos, que ao longo da estadia se acumulam em aumentativos “Chega!”).
- Tudo bem, glicemia ótima. 
- Seu Flavio, banho agora ou depois do café?
(a fome brava se assanhou com uma possível comida).
- Depois, garoto.

Vão os três outros já melhores que eu.

E chega o “café da manhã”: um copo de chá, duas bolachas maisena e um potinho (neste caso vale o diminutivo) de gelatina!

Arrasta-se também o dia. Estou muito cansado; tento dormir e só cochilo um pouco, várias tentativas, vários cochilos.

Alívio e alegrias com as visitas da Julieta e de minhas filhas Thais e Thelma; Thelma me aplica Jin Shin todos os dias, o que me ajuda muito.

Hora das visitas, hora de socialização e bate-papos entre todas e todos visitantes de nós quatro. Em geral são nossas mulheres e filhas; por sua natureza, falam muito, interagem, contam e comentam tudo e sobre tudo. Agitação que distrai e alegra. Os homens se chegam a seus pacientes, murmuram coisas quase inaudíveis, ficam calados, vão embora. 

Quando estamos sós todos nos ajudamos, na medida em que podemos. Nasce uma amizade e coleguismo que durará até que uns e outros vão tendo alta e são substituídos por outros que, em poucas horas, também entram na roda de amizades e auxílios mútuos. Alguns trocam ideias, projetos e números de telefone. Coisa inimaginável se estivéssemos reclusos, cada um em maravilhoso e inodoro quarto de hospitais bacanas, onde também familiares e amigos sofreriam e teriam suas vidas atrapalhadas pelos rodízios dia e noite.

Um dia após outro e uma noite arrastada, gosmenta, no meio...

Passei a, sozinho, me movimentar, ir ao banheiro, tomar banho, carregar a arara pelos corredores (socialização e papos sempre iguais com outras e outros carregadores de araras ou de sacos de urina).

E aqueles dias e noites de calor intenso e ar parado do início da primavera. Eu saía, andava muito, na esperança que o cansaço me levasse a algumas horas de sono.

Todas as manhãs, logo após o café, passam os Internos a quem coube tomar cada um como cobaia particular. Todos muito jovens e simpáticos. O “meu” pergunta como estou, faz minuciosa auscultação do coração e pulmões, solta minha faixa, aperta minha barriga e dá aquelas pancadinhas em cima de seus dedos pela barriga inteira, ausculta e diz que já há bastante movimento; examina os 29 pontos e diz que estão lindos. É o comentário também das enfermeiras que fazem os curativos. Não acho que sejam lindos, mas realmente feitos com tal perfeição pelo Dr. Cassio ou pela médica, também nissei, que o assistiu na cirurgia: até parece uma mensagem em Kanji...

De 3ª a 6ª pela manhã passa um Professor rodeado por 5 a 10 estudantes que dão aulas muito interessantes examinando e comentando sobre cada uma das cobaias. Terças e sextas são dias em que o Chefe da Clínica Cirúrgica, um nórdico ou descendente, alto e de cabelos grisalhos, dá as aulas, este sempre com bandos maiores de estudantes. Gosto muito do cara, que já conhecia desde o tempo de minha cirurgia anterior: baita experiência, enorme competência didática, simpático, prático e seguro, esta estada de agora é refresco diante da experiência de morte, ressurreição num mundo de sonhos maravilhosos, coerentes para mim em minha loucura, apavorantes para minha família e amigos.[2]

Um dia após outro, outra noite arrastada e gosmenta no meio...

A alta demorou ainda um pouco e finalmente pude me despedir dos colegas e amigos de ocasião, desejar-lhes... aquilo tudo que vem de dentro e convém.

FMFG - 9 de novembro de 2012


[1] Final de meu poema “Paixão”, que você pode ler clicando AQUI



2 Viajando na Morfinese: https://drive.google.com/file/d/1VDUudwpi5SVv8Avu8ivw89HgZ8-D96s0/view?usp=sharing


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